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sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

A SUPERSTIÇÃO HUMANA E O ENGANO DOS FILÓSOFOS



Daqui esse imenso lamaçal de erros do qual todo o orbe se encheu e se cobriu. Ora, pode-se dizer que a mente de cada um é um labirinto, de sorte que não é de admirar que nações, uma a uma, tenham sido arrastadas a múltiplas falsidades. E
não só isso, mas também que os seres humanos, quase que um a um, têm tido seus próprios deuses. Porque, como à ignorância e às trevas se adicionam a temeridade e a petulância, dificilmente um só jamais se achou que não fabricasse para si um ídolo ou imagem no lugar de Deus. Na verdade, exatamente como as águas borbulham de vasta e ampla fonte, imensa turba de deuses tem promanado da mente dos homens, enquanto cada um, a divagar com excessiva licença, erroneamente inventa isso ou aquilo acerca do próprio Deus.
Contudo, nem é necessário elaborar aqui um catálogo das superstições em que o mundo se tem enredilhado, pois não chegaria nunca ao fim, e ainda que nenhuma palavra se articulasse, à luz de tantas corruptelas se faz sobejamente evidente quão horrível é a cegueira da mente humana.
Deixo de considerar o populacho rude e indouto. Entre os filósofos, porém, que têm tentado penetrar o céu pela razão e pelo conhecimento, quão vergonhosa é a diversidade! Quanto mais cada um é dotado de profundo entendimento, e polido pela arte e pelo conhecimento, tanto mais procurou revestir de matizes sua opinião,
matizes esses, entretanto, se examinados mais de perto, verificarás que não passam de aparências evanescentes.
Pensaram os estóicos que haviam feito uma grande descoberta quando disseram que de todas as partes da natureza podiam extrair diversos nomes de Deus, sem que com isso a essência divina se dissociasse ou sofresse demérito.  Como se já não fôssemos, de fato, mais do que suficientemente inclinados à fatuidade, sem que nos ponham diante dos olhos uma infinidade de deuses, que nos arraste ao erro ainda mais profunda e violentamente!
Até mesmo a teologia esotérica dos egípcios mostra que todos diligenciaram nisso com afinco, de sorte que não parecessem ensandecer-se sem razão. E talvez, ao primeiro relance, algo como que provável houvesse de enganar aos símplices e incautos; nada, contudo, jamais inventou qualquer dos mortais que não corrompesse
torpemente a religião.
E esta diversidade tão confusa incrementou a ousadia aos epicureus e a outros crassos desprezadores da piedade para que rejeitassem a todo senso de Deus. Pois, quando viam os mais sábios, todos e cada um, digladiar-se com opiniões contrárias das divergências destes e do ensino fútil e mesmo absurdo de cada um, não hesitaram em concluir que, desnecessária e estultamente, os homens trazem tormento sobre si quando se põem a investigar um Deus que não existe. E isso julgaram que fariam impunemente, visto ser preferível que se lhes afigurasse negar inteiramente a existência de Deus, imaginando deuses discutíveis, e em conseqüência suscitando contendas que não chegam a nenhum fim. É verdade que esses tais arrazoam sem razão nem juízo; ou, melhor dizendo, abusam da ignorância dos homens, como de uma capa para cobrir sua impiedade; pois de forma alguma nos é lícito obscurecer a
glória de Deus. Como, porém, todos confessam não haver coisa alguma acerca da qual a um tempo doutos e indoutos discordam em grau tão elevado, daqui se conclui que as mentes dos homens, que tanto erram na investigação de Deus, são mais do que obtusas e cegas em se tratando dos mistérios celestes.
Louvada é por outros a resposta de Simônides, que, interpelado pelo tirano Hierão quem seria Deus, pediu lhe fosse concedido um dia para pensar. Quando, no dia seguinte, o tirano fez a mesma pergunta, solicitou ele mais dois dias; e depois de duplicado o número de dias mais vezes, finalmente respondeu: “Quanto mais tempo reflito, tanto mais obscuro o assunto me parece.” Prudentemente, sem dúvida, suspendeu ele o parecer acerca de matéria que lhe era tão obscura. Todavia, daqui se põe à mostra que, se os homens fossem ensinados só mediante a natureza, nada
extrairiam de seguro, ou sólido, ou preciso; ao contrário, os que adoram um Deus desconhecido só se prendem a princípios confusos [At 17.23].
João Calvino