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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

AGOSTINHO NÃO CONTRARIA ESTA TESE


Sei suficientemente bem ser comumente citada a declaração de Agostinho na qual ele só creria no evangelho se a autoridade da Igreja o movesse isso. Entretanto,é fácil de depreender, pelo próprio contexto, quão errônea e cavilosamente é ele citado neste sentido. O fato é que ele estava envolvido com os maniqueus, os quais
desejavam ser cridos sem controvérsia, quando protestavam, sem que o comprovasse, que tinham a verdade. De fato, visto que, para fomentarem confiança em seu Mani, apelavam para o evangelho, pergunta Agostinho: que haveriam eles de fazer se porventura se defrontassem com um homem que realmente não cresse no evangelho?
Com que gênero de argumentação haveriam de conduzi-lo a seu ponto de vista?
Acrescenta, a seguir: “Eu, na verdade, não creria no evangelho” etc., querendo com isso dizer que, enquanto era estranho à fé, não poderia ser levado de outra maneira a abraçar o evangelho como a verdade infalível de Deus se não fosse compelido pela autoridade da Igreja. E porventura surpreende se alguém, quando ainda
não conhece a Cristo, se deixa levar pelo respeito humano?
Portanto, Agostinho não está aqui ensinando que a fé dos piedosos está fundada na autoridade da Igreja, nem entende que daí dependa a certeza do evangelho. Mas está simplesmente ensinando que para os infiéis não haveria nenhuma certeza do evangelho, para que sejam daí ganhos para Cristo, a não ser que o consenso da
Igreja os force. E isto ele confirma um pouco antes não de forma obscura, falando assim: “Quando eu tiver louvado o que creio e tiver escarnecido o que crês, o que pensas que devamos julgar, ou que devamos fazer, senão desertarmos àqueles que nos convidam a conhecer coisas seguras, e depois ordenam que creiamos coisas
incertas e sigamos aqueles que antes nos convidam a crer o que ainda não somos capacitados a ver, de sorte que, feitos mais ousados pela própria fé, façamos jus a entender o que cremos, estando a firmar e iluminar-nos interiormente não mais o
espírito dos homens, mas o próprio Deus?”
São estas, textualmente, as palavras de Agostinho, das quais qualquer um pode concluir prontamente que o santo varão não tivera esta intenção: que fizesse pendente da autoridade ou do arbítrio da Igreja a fé que temos nas Escrituras; ao contrário, que apenas indicasse, o que também confessamos ser verdadeiro, que aqueles
que ainda não foram iluminados pelo Espírito de Deus são induzidos à docilidade pela reverência à Igreja, para que porfiem em aprender do evangelho a fé em Cristo.
E assim é que, desse modo, a autoridade da Igreja é, a seu ver, a preparação pela qual somos predispostos para a fé do evangelho. Portanto, como estamos vendo, ele quer que a certeza dos piedosos se assente em fundamento bem diverso.
Por outro lado, não estou negando que, não raro, no empenho de afirmar a autoridade da Escritura, a qual esses tais repudiavam, pressiona aos maniqueus com o consenso da Igreja inteira. Donde aquela sua exprobração contra Fausto, visto que ele não se submetia à verdade do evangelho, que era tão firme, tão sólida, celebrada com glória tão imensa e recomendada por sólidas sucessões desde o tempo dos apóstolos. Mas, em lugar algum ele pretendia ensinar que a autoridade que deferimos às Escrituras deva depender da definição ou do decreto de homens. Apenas traz
à baila o parecer universal da Igreja, em que levava manifesta vantagem sobre os adversários, porque no caso muito lhe valia.
Se alguém deseja uma comprovação mais plena disto, leia seu livreto A Utilidade do Crer, onde verificarás que ele não recomenda nenhuma outra disposição de crer, senão unicamente aquela que nos faculte acesso e seja oportuno começo da investigação, como ele próprio o diz, contudo, que não se deve aquiescer à mera opinião, mas arrimar-se na segura e sólida verdade.

João Calvino